sábado, 24 de janeiro de 2015

A última coisa que me lembro: Quarta Parte






   Não havia tempo e nem conseguiria abrir caminho com os braços, avançaria muito devagar, pois o esforço era grande e com o corte seria praticamente impossível, por isso corria colocando o ombro na frente e virando o rosto para trás assim usava todo o peso do meu corpo contra a grama, com certeza meu ombro ficou em retalhos e a orelha esquerda também a dor me fazia urrar e me enfraquecia, mas se parasse de correr e a besta me alcançasse...

   Via-o avançar em minha direção em uma velocidade que sabia que correr era inútil porque logo cansaria, acho que ele não estava nem ao menos correndo na verdade, aquilo que parecia um avançar rápido para mim para ele era cauteloso. O chão some e novamente estou em queda, sabia que estava correndo na direção do lago, talvez em baixo da água estivesse segura, porém não imaginei que tinha corrido tanto, estava em queda lateral como se tivesse derrubado uma porta, senti cheiro de enxofre e um calor escaldante quando uma corda enrolou-se no meu pé e me ergueu para cima, deixando-me de ponta cabeça sobre o suposto lago.

   Percebo que a “corda” é a língua do meu perseguidor. Extremamente longa, roxa e forte. Ele para na base do barranco onde a grama acaba, sua cabeça e patas dianteiras estão à vista, olho para baixo e vejo uma carcaça de um parente do chifrudo em decomposição em meio o que outrora era água, mas agora vejo que é uma lama escura, pegajosa e fervente . Acho que ele me salvou! Ou salvou-me para devorar-me, não houve tempo para descobrir. A chuva batia forte em mim agora que estava totalmente desprotegida e pendurada ao ar livre. Senti a estrondosa rajada de vento característica da chegada do dragão que por sua vez balançou-me tão forte que pensei que fosse cair e morrer com a cabeça atolada em um lago infernal. Mas meu antigo perseguidor manteve-me firme e escondeu-se na vegetação dando um passo para trás, porém, surpreendendo-me deixou-me exatamente exposta no mesmíssimo lugar, creio que estivesse tão apavorado quanto eu e portanto faria o menor número de movimentos que fosse possível para não atrair a atenção. O dragão estava do outro lado do poço, era tão grande que fez do enorme poço uma pequena poça de água e se esticasse o seu longo pescoço escamado poderia engolir a mim e o chifrudo facilmente, porém era perceptível em comparação aos outros dragões que este era menor. Via-o pouco em meio aquele breu da tempestade, em sua coloração o preto era predominante, mas percebi alguns tons de coloração vermelha em suas escamas na parte interior do seu pescoço. Se não estivesse a instantes de me devorar diria que era deslumbrante, porém ele estava! Então digo terrivelmente monstruoso e com sangue em seus dentes, provavelmente já havia comido um irmão do chifrudo, mas não estava satisfeito.

   Sentia-me cozinhando sobre aquele vapor diabólico só a chuva aliviava a sensação de estar em chamas. O dragão serpenteia a cabeça em busca de algo, acho que era pequena demais para ser vista. Percebo que o quadrupede mudou a sua coloração conforme a da grama como um camaleão. Metade branco metade verde. Porque eles não fizeram o mesmo antes eu não sei, talvez estivessem mesmo despreocupados.

   Olho para o dragão sentindo-me tonta pela vertigem e penso que nada mais importa, logo estaria em seu estômago, só teria passado primeiro pelos seus colossais dentes, mas já estaria morta. Provavelmente é claro. Começo a me sacudir na intenção que o outro monstro chifrudo me puxe para dentro da vegetação, obviamente ele não entende, talvez também estivesse paralisado de medo. Curvo-me para cima e agarro a sua língua se puxasse mais forte com certeza me puxaria de volta, só esperava que me soltasse ao chegar a sua boca. Preferi apostar nele à no dragão. Porém, quando minha ensanguentada mão tocou sua língua ele soltou-me.

   Na queda consegui agarrar algumas pedras da beirada do barranco e de ponta cabeça meu corpo fez um pêndulo ate bater com a minha caixa torácica na terra. O chifrudo ralava sua língua nos dentes e balançava sua cabeça em sinal de repulsa. Seu disfarce estava acabado e o dragão avançou sobre ele. O impacto do dragão jogou-o longe da beirada do poço amassando muita grama.

   Pendurada ali sangrando, cansada e encharcada chorei ouvindo o som do meu protetor sendo devorado, mas vi a única oportunidade de sair dali, pois o dragão estava ocupado e de costas para mim. Arrastei-me para cima e senti uma fisgada no braço direito que estava estraçalhado, isso me fez soltar a base da grama amassada e em um movimento rápido troquei de braço e puxei-me totalmente para cima.

  Em pé e vendo o horrendo espetáculo da morte do chifrudo, rasguei um pedaço da minha blusa, deixando minha barriga desprotegida. Fiz uma atadura em meu braço tentando conter o sangramento do corte mais profundo. Voltei a correr desesperadamente pela savana. Cortando-me outra vez, com a pele inchada pela chuva torrencial atravessando sob relâmpagos aquele mundo ao qual claramente não pertencia. Estava tão, mas tão escuro!

   Finalmente a gigantesca grama teve fim e cheguei a um planalto de morros verdes e vegetação realmente rasteira, tão rasteira e macia que parecia um tapete. Continuei correndo subindo um pequeno morro e descendo outro. Uma rajada de vento vez com que eu rolasse pelo chão rastejando até o sopé de um pequeno morro. Um dragão estava sobrevoando acima de mim, ele tinha me visto!

   Logo juntaram-se todos os seus irmãos ao seu intimidador voo e o que via no céu era um emaranhado de gigantescas serpentes voadoras. Negras como a noite, mescladas com a noite. Meu pavor era tanto que se avistasse uma pedra no solo a pegaria e arremeteria contra a própria cabeça na esperança de deixar aquele lugar, ao menos em espirito. Subi um morro muito íngreme, tão íngreme que não podia ver o que estava além dele.

   No topo dele pisei em falso e a queda foi iminente. Desta vez meu corpo girava e girava no ar perdido na vastidão de um imenso vale. Sentia que estava pesando uma tonelada e que a qualquer momento sentiria a última dor desfazendo-me em uma rocha, mas a queda prolongava-se e prolongava-se. Em meio a um relâmpago visualizei um rio aguardando-me no final da minha queda e subitamente senti uma vã esperança de que se caísse em água, talvez quebrasse alguns ossos, porém sobrevivesse. Ignorei totalmente o pensamento lógico de que atingir a água (considerando que fosse água, já que não me saí muito bem em minha última suposição em relação a isso) na velocidade que atingiria seria exatamente o mesmo que cair sobre uma rocha, mesmo assim pensei que...

   Garras cravaram-se em meus pulmões entre as minhas costelas impedindo abruptamente a minha queda e na brusca parada senti esguichar sangue por dentro, a dor foi absurda. Não pude gritar, minha boca encheu-se de sangue e logo estava sufocando e cuspindo. Em quanto experimentava curtos desmaios via que este ser alado era diferente dos dragões, três vezes o meu tamanho e com uma cor de areia-de-praia, quando saia de um apagão e observava aquele inóspito mundo lá em baixo, somente um pensamento ocorria em minha mente.

- Deus! Aonde acordarei da próxima vez?





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